– Se você pudesse ter qualquer coisa que quisesse, o que iria querer?
– Mmmm…
– Qualquer coisa. O que mais você deseja.
– Um sanduíche.
– Um sanduíche?!? Que pedido mais estúpido! Que falta de imaginação! Eu pediria um trilhão de bilhão de dólares, uma nave espacial só pra mim e um continente privado.
– Eu consigo meus desejos.CALVIN & HOBBES
Aqueles que muito sonham desenvolvem fobia da realidade, já que esta quase sempre é mais a carrasca de seus grandiosíssimos sonhos do que a aliada em sua concretização. “O real é o que não funciona”, diz Lacan: o pneu que fura na estrada é bem mais real (e mais frequente) que o carro que ganha asas e decola. E isso quer dizer, também, que o real não está “nem aí” para nossos desejos. E muito menos para estes desejos com elefantíase, obesos de tanto encherem a pança com o algodão-doce da fantasia, que chamamos de “sonhos” (e me refiro aos que nutrimos e devaneamos quando acordados).
Não sinto como se haja nada no real — nenhuma providência, nenhuma divindade, nenhuma santa milagreira ou anjo-da-guarda –– que esteja velando sobre nós, com o encargo de fazer em carne o que imaginamos com as coloridas e vagas formas das alucinações féericas…
Fui muito infeliz enquanto fui um grande sonhador – isto é certo. “Não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu”, escreve o Pessoa em algum canto, e eu era bem assim. Pois todos sabem que a satisfação é mais encontrável pelo mendigo que não pede da vida nada além de um pão com manteiga diário do que por aquele idealista apaixonado que tem fome de infinito e absoluto – e cujo coração pode padecer de inanição, morrer de raquitismo, ainda que viva num palácio, rodeado por suntuosos banquetes…
Não quero dizer com isto que seja justo que o mendigo, que raramente é feliz, tenha que rastejar no mundo atrás de migalhas, enquanto que os príncipes, que ao menos têm satisfeitas com facilidade todas as suas necessidades físicas, caguem em privadas de ouro e assoem o nariz em cédulas preciosas…
Só quero dizer que a felicidade não é função daquilo que se tem, mas da relação entre o que se pede da vida e o que se consegue dela. E creio que aqueles que mais conseguem da vida são aqueles que menos acreditam que ela dá seus presentes como graças, do céu despencados.
Pois a vida não é do céu. É um fruto da terra.
* * * * *
O pesadelo do cristianismo também se deve a isto: esta doutrina nos ensina a desejar o impossível, e desejar o impossível é atitude que dana, que aflige, que só traz infelicidade. Não quero dizer que deva-se somente desejar o fácil. Pelo contrário: gosto muito da sugestão de Rilke que diz que “devemos sempre preferir o difícil, e assim nossa vida nunca cessará de se expandir”. Nem tampouco estou tacando pedras naqueles que “desejam um mundo melhor” – me incluo entre eles.
Mas desejar um mundo melhor é uma coisa. Desejar o impossível é outra. E muita gente confunde sua utopia irrealizável com um sonho sensato. Quase dou risada de mim mesmo por ter escrito este aparente absurdo, esta contradição em termos: “sonho sensato”. É quase como falar em “círculo quadrado”! Pois a sensatez jamais esteve entre os predicados dos ébrios e loucos sonhos humanos…
Donde o perigo das utopias, quando tomadas como verdades. Quanto sangue derramado em nome do “reino maravilhoso da fraternidade universal”, para usar uma expressão de Górki! E que, é preciso admitir, jamais se fez. Não somos uma fraternidade porra nenhuma. Estamos longe disso, como qualquer um que tenha uma lucidez mínima e que não se deixe cegar por um otimismo obrigatório e míope tem que admitir. A história humana é sangrenta, visceral, quase obscena. Uma raça alienígena que conhecesse a história destes terráqueos chamados homens hesitariam muito antes de entrar em contato… Que ganhariam lidando conosco? Perigoso é acabarem tomando pipoco! Que o digam os Navi de Pandora…
Tendo a achar que o tal do mundo melhor, que o slogan do Fórum Social Mundial teima em nos dizer que é possível, só se construirá quando parar tanto a indiferença por sua invenção quanto a tentativa de erguer-se a ele nas asas de fantasias impossíveis e sonhos vãos. Diria eu que um mundo melhor é possível se soubermos sonhar com lucidez.
Mas sonhar com lucidez significa sonhar cada vez menos, e conhecer cada vez mais, agir cada vez mais, amar cada vez mais. Sonhar com lucidez é deixar a lucidez dissolver e nadificar todos os sonhos que não são nada além de desejos com delírio de potência, incapazes de gerarem bons frutos reais. E bons frutos imaginários não são nada que preste – nem frutos são, mas fantasmas, vagas inutilidades…
(21/Janeiro/2010)
Publicado em: 07/04/10
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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